quarta-feira, 13 de abril de 2011

Descosturando à Taxidermia diante de Paula, os pontos quem desfez fomos nós, as linhas quem arrebenta somos nós.

Ok. Vamos ver se consigo um trabalho finalizado hoje. Na última vez que tentei redigir esse texto, desci pra receber uns amigos, e devolver um celular que havia sido esquecido em minha casa dois dias antes, e quando voltei o computador autonomamente havia sido reiniciado. Além disso, não sei até que horas posso me corroer aqui nesta cadeira, amanhã pela manhã terei de estudar, à tarde e à noite trabalhar. É. Sabe Tia, estou matematicamente, a partir de então, evitando chamá-la assim. Parece que o modo carinhoso vem querendo me lembrar algo como envelhecer. Pois então preferirei Papoula. Apesar de germinar o ópio, uma flor é sempre flor. E precisamos do ópio também.
Não sei se poderei deixar esse texto dormir. Chego à conclusão de que é sempre bom. Mas a necessidade de uma nova produção reclamará quando nos encontrarmos novamente, eu sei. Quero te dizer que precisamos de um pouco mais de alegria. Antes que nossos rostos demonstrem o que nossa alma está se incomodando em aceitar, foi decisão mental e não de essência: nós envelhecemos. Precisamos reavivar a coisa, colocá-la nos eixos. Só restamos nós. E nem quero escrever me preocupando com a poesia de cada fragmento. Porque a coisa está perdida. Assim, a poesia se perdeu também. É, a coisa se perdeu de vez. E a corporação não quer pessoas como nós.
Um dia desses, era um domingo e eu havia trabalhado mesmo assim, depois viajei pra ensaiar, enquanto aguardava meu diretor, em frente a uma padaria, vi sentado sobre o degrau ao meu lado um rapaz que comia algo como uma esfirra. Logo depois dobrou a esquina uma garota, que não posso supor a idade, mas atrevo-me a arriscar a idéia de que a flor que a descobre como mulher, com ovário, amor e seios, já tenha lhe nascido como uma pequena correnteza de vida que escorre, pétalas vermelhas deslizando pela virilha. Ela se vestia com tons claros, como rosa bebê e branco, roupas de segunda ou terceira mão. O rapaz imparcialmente à vida que lhe rodeava comia, quando nós dois ouvimos a garota dizer:
- Me dá um pedacinho, moço?
Eu virei pra ver como reagiria, ele assentiu com a cabeça e continuou a mastigar, não pareceu que aquilo não lhe era algo comum. Ela abaixou e delicadamente mordeu quase sem fome, com as mãos levantadas como seriam as de uma majestade jovem. Voltou o corpo à ereção, e proferiu um “valeu” ao homem, que novamente assentiu sem nenhum contato com algum mundo que não fosse o dele. Ela passou pela minha frente e se posicionou em pé ao meu lado. Senti seu olhar, como se me seduzisse a inevitavelmente retribuí-lo, quando a encarei, deparei o pior olhar que jamais supus receber. Ela exigia algo de mim também, e não era um pedaço de esfirra. Não resolveria comprar-lhe tudo o que havia na padaria, ela queria comer eu. Minhas entranhas, com a coragem, a fé no Criador, a paixão pela vida, os instantes completos, os desejos, os segredos, ou o que eu ainda possuísse em mim. Cada vez que a olhava e virava o rosto, tornava a olhar, aos poucos o rosto da menina se desfigurava, o nariz se movia, como se sua face fosse de água e lhe caísse gotas pesadas e agudas, irônicas, rindo da falta de sabedoria dos semelhantes de sua espécie. Senti sua afronta, uma raiva originária da ignorância que me consumia e me fazia crer na estrutura que eu criava e nas teorias que pregava. Inquieto eu evitava seus olhos, que me fitavam com inocência, aquela jovem feita em criança era o pior inimigo que um homem pode ter: o animal rastejante, que só no fundo do olhar expõe sua verdadeira intenção. Então se movimenta elegante, te enlouquece a desvendá-la, obrigando-o a mergulhar fundo em seus olhos silenciosos e absorver o veneno que lhe preparara.
Não, ela não queria que saciasse sua fome, era algo infinitamente maior, queria aumentá-la e causar igual sensação em mim. Eu não deveria nunca a ela um pedaço de pão, mas a cada refeição que eu fizesse meu estômago deveria se retorcer castigado pelo pecado de não me lembrar que há pessoas que mesmo tendo um teto sentem fome, e há pessoas que não tendo uma casa onde se esconder, sentem além da fome o frio. E as que têm um lar têm também a humilhação de pedir, pois as esmolas somente são espontâneas aos moradores de rua. Mais do que suprir o corpo, o mundo tem fome da consciência do outro por si.
Estamos diante do grande espelho, aquele espelho que nós dois refletimos sobre a criação. A inversão é insuportável porque precisamos fugir, não queremos abraçar nosso oposto. E somos animais, os benditos animais que pensam. No entanto somos casca, e o contrário de nós mesmos pra nos adequarmos, pelo medo de falhar, de deixar a vida nos vencer e dizer: eu avisei o quanto sou insuportável, e você quis pintar suas figuras e brincar comigo, mas eu te cerquei com leões.

A cena diante da padaria, só a você pensei em contar. Lembro-me que te enviei um torpedo sobre outra coisa, mas porque sabia que poderíamos talvez entender melhor aquele mundo. O que temos feito da vida é fazer a vida em si. Não vamos nos empalhar e guardar nosso presente ao tempo futuro, somos mutáveis, adaptáveis, amáveis duentis e amantes. Insisto que devemos mesmo apostar na felicidade, pois o tudo mais está acabado, e não sabemos quanto tempo há até ela esgotar-se. “E, no entanto é preciso cantar, é preciso cantar e alegrar a cidade. (...) Porque são tantas coisas azuis, há tão grandes promessas de luz, tanto amor para amar de que a gente nem sabe”. Vinícius em nossa música brasileira já diz, e nós só estamos querendo descobrir. Porque temos medo do espelho, é que talvez nosso maior desejo seja o de nos virar do avesso, e ver no espelho exatamente o oposto do que somos, e gritar: “Vejam quantas porcarias eu sou capaz de fazer aos seus olhos! Mas isso... Isso... Isso é minha vida! Vou enlouquecer antes que o sol se ponha, queiram vocês ou não.”. E ser submergido pelo amor que temos pela arte em que nos desposamos se é que a conhecemos, nós buscaríamos nos entregar a ela de corpo inteiro ao invés de fugir do nosso extremo contrário exibido pelo espelho.
E deixar o mundo aqui, como está. Porque uma única pessoa pode ser todo um universo pra outra. Assim como sei que o Viktor é seu universo agora, onde algumas estrelas tentam reluzirem inconvenientes e impróprias, mas passarão como cadentes ou cometas.
Houve há pouco, no Rio de Janeiro, um homem que apagou doze universos nascidos há tão pouco tempo considerando a imensidão da vida, e em seguida apagou seu próprio universo. Não consigo crer que ele possuía asco pela vida. Organicamente, constantemente eu apenas não sinto, não sei, não vivo nada sobre isso. Porque já não tenho alma pra adoecer e entender. Mas sei que essa dor virá, virá e me obrigará a deixá-la dançar por eu todo até que eu a vomite. Contudo tua mão estará aqui pra quando eu precisar de poros pra umedecer, secando meu rosto, afagando a ferida viva que pulsa cheia de anormalidade em mim.