sábado, 19 de outubro de 2013

Engenharia do medo; Arquitetura do Silêncio.

Escondo cada cálculo do meu mapa.
Estremeço perante centímetros de chão rachado.
Vivo à margem de mim,
escondido de minhas profundezas,
sozinho
por não deixar que ninguém more dentro de mim
e saiba da minha verdade.
O pecado rubro sufoca minha garganta.
Fujo tanto que não consigo mais escrever.
Emudeci, sem água,
vegetativo e oco. Desesperado por socorro
no meio fio de inúmeras avenidas.
Enlouqueci de minha própria morte que não consigo alcançar.
Arrepia-me ouvir as solas dos pés de meu inimigo
tingido a sangue santo.
Quero chamar meu pai para que me proteja,
chorar em seu colo e peito quentes de fraternidade,
perdoá-lo; sobretudo, sobretudo.
Ou sendo o mais confessional possível,
atirar-me do abismo
que a janela do prédio forja,
saltando,
vingar-me com toda a voracidade
de uma fome comendo o mundo.
Doido sob vários céus escuros e luas,
não sei quem viu,
andei pela cidade
num desejo profundo de morte.
Tranquei o desnorteado dentro de mim,
não saí mais à procura de ser morto,
porque morrer deve doer fisicamente
e fiquei covarde demais depois que apanhei.
Doido, sou meu calabouço. 

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

*****

criança no asfalto
catando lixo
morre no semáforo

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Indivisível.

Em selvageria o desejo de ter colo sobe ao alto de meu peito.
Descubro que quero ser pai -
ao meu filho -, tudo o que o meu não foi.


Com os olhos úmidos:
quero salvar minha mãe
de toda aquela solidão de mulher que sofreu.
A noite aparece silenciosa e não tenho em que me segurar.
Os fundos dos meus olhos estão quentes
da lava de lágrimas que nunca escorre.
Como perdoar-me pelo que sou?
Deus, o quanto quis semear algo
além de meus sonhos em névoa.
Esse café frio me dói no estômago.
Todos os dias quando acordo
eu vomito uma estrela de mil pontas.
Depois engulo as pedras cinzas da cidade.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Perdoe-me, Folha Seca.


Delicadeza tua: escorre-me dos dedos, a arraigar a terra...
Procurando a luz,
vejo raízes ganhando vida para além do céu.
Mantenho-me abaixo da terra:
semente e quietude.
Os transeuntes se perderão à minha vista
[que se apaga],
rogo-lhe que se lembre
dos segredos que cultivei em tua pele...
A hidratação das folhas se conteve como meu amor pelo mundo.
Não estou gelado, contudo emudeci.
Nada sei agora e precisaria esperar até a madrugada acabar para sabê-lo
Só [mente] fora do esconderijo,
verdades tuas enraízam-me.
Cicatrizes de esperança:
tento cantá-las,
fogem -
senão pelo fato
de que as amo tanto que matá-las-ia
para que não fugissem.
Minhas últimas pétalas perderam-se no [não] eterno de meus outros olhos;
teus.
 
(João Gabriel Bruscato Mistura)
 
PERDOE-ME, FOLHA SECA.
                                              (Por Stefani Costa)
 
Humildemente
 
Peço licença para contemplar a Folha Seca
 
[tão seca tão esmagada]
 
O barulho do vento faz balançar a poesia de menina
 
[ela corre, o cabelo voa]
 
No outono de 1977 – uma linda rosa se foi:
 
[ninguém pisou nas pétalas enraivecidas]
                                           
Perdoe-me, Folha Seca
 Por tamanho descuido com tua fibra inquebrável 
 
No andar calmo do homem generoso
 
A capa de chuva protege inúmeras lágrimas
 
[elas se movem, não se enxugam e se misturam com a água]
 
As mãos negras encobrem o rosto por onde passa a estupefação
 
[o peito vibra e debruça tudo em formato de eternidade para o Universo]
 
Uma gota exultante mais uma vez recai sob a Folha Seca
 
[a rosa nos observa do céu – serena]
 
Texto inspirado no ensaio fotográfico de Silvia Ferrante — intitulado por mim e por João Gabriel Bruscato Mistura: “Perdoe-me, Folha Seca”.
 
Inspiração necessária após a leitura do romance de Rosinha e Bilú; frutos de um amor disputado entre os dogmas da Igreja, da aristocracia rural sanjoanense, e dos grandes suspiros de elevação ao mais sublime sentimento de todos.
 
(Rosinha morreu em fevereiro do ano de 1977. Mas por causa do título e do “tema” das fotos - eu modifiquei a estação do ano para o Outono - para assim prevalecer o intuito da folha seca. Esta é a única parte em que não fui fiel à história original do livro “A Primeira Dama”, de Silvia Ferrante).
 
("Perdoe-me, Folha Seca" é um trabalho com um poema de João Gabriel Bruscato Mistura e um de Stefani Costa (http://asmaosdojoalheiro.wordpress.com) em agradecimento à Silvia Ferrante, que nos convidou a registrar a vida em fotografias numa velha estação).

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Human[idade]


Madrugada ascendia. A senhora se in-qui-e-ta-va.
Amassar o pão... Sim: tranquilo e branco,
                                                                              [fazer]
o pão dos estranhos, matéria de salvação e ternura,
a massa se revelando – cor e forma – no calor. Cascas
estalando, comer arestas de vida, Pequenos Embriões
                                                                        de Deus.
A mágica do refazer diário vencendo
o limite – impossibilidade dos olhos
Velha e cega em conexão com a fome
                                                                        [alheia]
enterrava os dedos escuros na farinha
                                                                         [branca]
criando as receitas novas. Ao término,
                                                                         [nunca]
revia, ninguém anotava.
Bebia o copo fundo de alegria, ascen-
dia-se com o amanhecer: depositar na
janela, sobre a bandeja de bambu que
ela mesma fizera: o banquete de pães
frescosquentes (ah...!) à venda. Pouco
lucrava, sobrevivia. Assim escolhera e
- brisa leve e morna no coração -
encantara-se.
Após terminado o trabalho, em amor
- num gesto de prosseguir -
deitava-se, exausta, e por ter nova-
                                               [mente]
concluído a magia
e o suor: sonhava.

sábado, 20 de julho de 2013

VELHA EM MIM

Certa vez, quando ainda era jovem
Endividei-me, deslumbrado, com equipamentos
que cumpririam meu sonho de juventude
Caixas de som, jaquetas, microfones e um violão

 
Meus sonhos se foram
com a necessidade da vida de se seguir
E eu que pagava transporte para trabalhar
Fixei-me na ideia de não mais gastar dinheiro
em casos de inclinações


Em um fim de tarde, voltando do trabalho
deparei-me com uma senhora vendendo mel
No mesmo instante fechei meu mundo para o dela
Afim de que ela não levasse aquilo que era meu
Percebendo, ela se dirigiu a alguém que estava ao meu lado
Nunca a mim


E lhe pediu vinte reais por uma garrafa de mel da melhor qualidade
Sem sucesso, baixou a oferta para quinze
e depois, com olhos de quem procura em algo sem sabor
uma gota de esperança para manter-se lutando
(quem sabe se não por filhos pequenos)
implorou suavemente: ‘nem dez reais você não tem para me ajudar?’


Ouviu que não e seguiu em frente, sem nem falar comigo
que recusei sua proposta antes mesmo que a fizesse.


Senti dentro de mim que os sapatos daquela senhora
eram surrados como nada em mim foi, e suas pernas,
de tanto caminhar a procura de algo que o mundo esqueceu-se de ter,
estavam mais cansadas do que meu coração jamais estaria.


Nunca mais me curei da porção dela que ficou em mim.

terça-feira, 11 de junho de 2013

Por raiva; (ou pureza rasgada como lixo).


Estou me violando, escondo o quanto meu peito murmura a cavidade que arquitetei. Calei-me em guerra por muito medo. Quero morrer para não matar; morro todos os dias. O mundo tem fome e eu perdi a consciência disso porque sequei e não sinto sequer minha própria fome. O coração vem à boca, engolimos: queima e desce.

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Ensaios sobre os 'Anjos da Noite'.

Ensaio I
 
Os olhos:
ruídos, em  lava penetram a terra
corvos no espelho da noite
luz sedenta do raio
asas ventando
anjos
lábios – navalha de nervos
cacos
mictórios
tão belo feio
hienas dançando
aurora azul, sem fuga
silenciar&deslizar sorrindo
cravando rochas humildes yin
História.
 
(João Gabriel Bruscato Mistura)
 
Ensaio II
 
A noite vem com sua majestade cósmica
Acredita ter o poder absoluto sobre tudo
A noite vem, engole o dia pouco a pouco
E saboreia esse cálice de vida
 
A noite sempre se sente soberana
Aterroriza alguns com suas sombras e sons
Encanta a outros com seus mistérios
 
Em meio a isso três pontos aparecem
Encaram a noite mágica e poderosa
Travam batalhas que só eles conhecem
Instigam o mundo e espalham vida
 
A noite não se conforma, mas não tem o que fazer
Afinal, não é tão poderosa assim
Os Anjos acontecem….
 
(Silvia Ferrante)
 
Ensaio III
 
Os Anjos da Noite não escutam alto e ponderam o som. O volume máximo que podem alcançar fica dentro do belíssimo e absoluto silêncio. Há um enorme estandarte azul fazendo-os tropeçar, como as ditas e reconhecidas rasteiras da vida. Naquela noite dentro do bosque esfumaçado, a garota de pele branca ajoelhou-se em sinal da cruz e protegeu os olhos dos que mentiam somente para saber do que se tratava o ocorrido.
 
Armados por espadas: lançam chamas; não haveria como trapacear um grande jogo de azar. O vulto inesperado passou por detrás das campanas, dos chalés adormecidos por pura diversão imensamente apaziguadora. Se for aquele um visitante qualquer, bastava a expulsão e examinação dos corpos.
 
O mais raro da ocasião de dividir um culto com os aprumados pensamentos que rondam à cabeça dos curiosos, era, certamente a composição do enredo. No centro, no alto, o mais emblemático deles. Cabelos de Anjo esvoaçado pelo tempo. Não há espaço para rugas, elas foram perdidas por uma juventude forte, incansável. No círculo intermediário o Anjo da Asa Quebrada, uma posição crucial para o desempenho na luz, no vento, no estardalhaço. Fechando a tríade incomum dos jornais, O Anjo, de tão metálico era loquaz, infinito, não-padrão.
 
Ajudavam o resto da humanidade na consistência de que a verdade é concebível ou não, mas o ponto de partida atravessa gerações e séculos.
 
 

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

ALVORADA FALCÃO

Girassóis pensantes
em torno da mente - campo inteiro -,
a se germinar pela alma.

Misteriosamente mãe-Terra
de seus versados tons

Descobre a voz do peito
que Chico cantou

Se flor desabrocha
sob calado sereno
revela-se ao sol
semente rompendo o cimento

Do pólen viestes
só [mente] ao pólen voltarás

Enquanto - e para sempre
viva
En-cantos misteriosos
o entristecer da cotovia
e a mão segura do rouxinol

natureza: desacorrentando-se
pétala a pétala

(Dedicado à Silvia Ferrante).

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Enlevo

Certas coisas são feitas apenas sob silêncio, essas: as que mais conduziam Joana.
À noite, secretamente, iniciavam-se os rituais dela. Voz doce - vinda de uma garganta que tremia hesitando entre o medo e a fúria do poder analiticamente empregado- boca vazia e pura. Acendia um incenso "Sangue de Dragão" - poderes mágicos -, comia algo leve sob a fumaça desenhada no ar, depois tomava o banho demorado: todos os produtos um ao lado do outro: sabonetes, cremes, esfoliantes, perfumes, maquiagens, o vestido preto de seda caindo sobre o corpo e desenhando o bico dos seios. Em tudo o que fazia acreditava que algo lhe aproximaria de Danilo, Joana trabalharia com a diversidade atemporal do universo e atrairia sua presa pelo inconsciente ou por um contato noturno e misterioso, entre as almas.

Em paz com seu ódio, repetia a si mesma: eu compreendo sem viver, eu compreendo sem viver. A cada vez que inventava, pintava dentro de si e com seu próprio sangue uma nova tela à qual ela mesma habitaria: a voz de Danilo coçava em sua nuca, como cravando na terra uma bandeira fina de felicidade colorindo a lentidão arrastada e morna dos dias.

Gerado o encanto, via-se ao espelho, a seiva que desce umedecera-lhe a virilha e as redondezas das coxas... Que mulher desejável. Sentia o cheiro do próprio prazer escorrendo-lhe pernas abaixo, olhou-se fundos nos olhos, bem ao fundo veria sua presa. O amor morava-lhe nos olhos. Lentamente, em um gesto que poderia lhe escapar a qualquer momento, desenhava sobre os seios uma superfície vermelha, criada pelo batom, preparando-se a adentrar os campos minados de batalha da vida, a cor dava-lhe a sensação de ser uma mulher moldável como uma argila de Vênus, velas acendiam-lhe no céu da boca e a luz afugentava pelos olhos, tão imensa beleza escapar-se-ia das retinas humanas, só tocar-lhe-ia algo de divino. Humanazinha, entretanto, e por vezes cansada, entregava-se aos limites de um destino de moça conveniente e incompleta; porém exorcista. Até ela mesma sentia ânsia por causar-se prazer com os dentes, em selvageria, enlouquecendo as quatro paredes do cômodo. Qual homem não se deitaria sobre o corpo de Joana? Danilo. Por quem ela se atiraria pela varanda do apartamento e morreria quebrada no chão, latejando seu romantismo tosco e clarividente de quem alucina demais.

Como entrar no mar sem pretensão de retorno. A eternidade envolta ao corpo como água a fazia querer buscar a fundo a cor dos olhos dele cercando-lhe à pele que ela o ofertara. Tudo o que fantasiava e sussurrava-se no âmago a feria por não ter autonomia, quando alcançava o etéreo através do frio que essas ideias coaguladas em sangue gelado dentro do espírito lhe faziam sentir, prendia-se a essa condição de eternidade, que viessem os gemidos e seguidamente o torpor: a tudo se ofertava para sentir-se inteira dentro de si mesma. Atingida a percepção, rompia os lacres daquilo que não era dela e comia faminta a própria verdade. Justamente o não realizar de seus desejos lhe fazia firmar-se a si mesma, parecia-lhe que ela era sonsa, debruçava-se pelo inacabado com voraz redenção: era para ter sido, mas porque somente eu compreendi não foi - dizia-se em culpa. Ia conduzindo a si mesma, encoberta e recolhida, em profunda solidão.

Pairava um pouco sobre uma visão da própria realidade, cabelos molhados de suor, o couro da cabeça quente, e com uma afobação variante, vagamente feita em suspiros, os olhos ficavam lacrimejantes de estar diante da próxima criação de si mesma. Em silêncio, desligando-se do mundo, ouvindo o sopro da cidade que apesar de adormecida estava viva, ouvia e sentia como cócegas no cérebro e no coração a voz amena e enraizada de Danilo:

“Joana, eu te contemplo agora, e teus suores são meu manjar insigne e devastador. Joana, o cheiro dos meus pelos estão em tuas orelhas, às pontas dos teus seios são pequenos cigarros de lírio aquecendo-me a garganta e a boca que te traga insaciável e entregue. Teu mundo flutuante e consistente penetrou em meus olhos; eu emburreci, sempre te quis e por medo virei o rosto, mas enchi-me de coragem e retornarei. Vamos nos retirar de onde estamos, meu anjo escarlate, imploro-te que me regenere e aceite... Minha ossatura cimentada se desfez em lava quando você pressionou meu peito. Venha até meu mundo sem deixar o seu, passeia tua língua por minhas juntas e extensões de pele convulsiva e ardente, faça avesso de minha constância. Resgata-me dos vícios que me atrofiam as pálpebras e o sexo e me doem nas têmporas. Deixe-me lavar teus pés e teus cabelos, eu te servirei café, ameixas e pão.”

Os versos aos quais ele elevava-a através dos ouvidos eram novos, seguindo a mesma linha daqueles que escrevera nas mãos dela em outro devaneio, mas nas invenções de Joana em sua calúnia de fêmea abandonada, ele sempre surgia com algo novo. Delicadazinha, flutuava por si mesma... Como se fosse uma mulher amada.

Brevemente o anoitecer transformava-se em um Ciclope cujo olho nascera para condená-la: a esposa de Danilo invadia suas magias e pensamentos e o retirava de lá, sem nenhum ódio por Joana, apenas vitoriosa, em posse, como se um corvo dissesse-lhe que sua vida perder-se-ia em angústias porque desejou o que não era seu. Poupando-se, retornava então aos aposentos de sua mente, vencida.

Ele certamente voltaria, Joana não se apressava, até o cinzeiro manteve na sala, junto à fotografia do filho menor de Danilo. Aquelas contas que venciam dia após dia e ela não possuía meios de pagar porque não saía de casa e muito menos obtinha salário, estas contas eles iriam quitar de algum modo quando Danilo entrasse pela porta que fecharia às próprias costas para nunca mais abrir. Penava a espera esgotando as duas garrafas de conhaque da casa, bebidas dele que ficaram lá e que não deveria estar tomando porque quando fumava demais e consumia bebidas selvagens perdia seu cheiro natural de mulher, e também porque tudo estava acabando, até mesmo a comida, e boas doses privar-na-iam do frio quando não houvesse a quem juntar-se no leito... 'Este caldo de amor cuja receita eu herdei de você e preparei muito forte, grosso e fervendo, para te alimentar, ele tinha um ingrediente secreto que tua mãe não te ensinou. Tenho certeza que por esse segredo não desvendado é que as coisas foram perdendo a graça e a partir de então você decidiu ir embora, mas criaremos substâncias novas através dos dias e eles serão só nossos... Até com teus filhos posso me entender. Cozinharei de modo especial quando eles vierem para que nunca se cansem de vir! A mãe deles verá que tudo está melhor assim, se inspirará e conseguirá alguém novo para acompanhá-la, feito da mesma matéria que ela, assim como somos da mesma um do outro, my sweet Dan...'

Ontem mesmo Joana ouviu a campainha tocar inúmeras vezes enquanto lia, totalmente irrecuperável, Orlando, de Virginia Woolf. O protagonista era de forma muito impressionante parecidíssimo com o jeito dele. Ao mesmo tempo em que não atenderia ninguém, ouvia o soar da campainha sem que ela tocasse, sabia do gosto de Danilo pela literatura de Virgínia, e conforme ouvia, corria implacavelmente à porta com uma esperança infundada de que fosse ele. Corria, corria, corria, até nada encontrar... Certas vezes realmente vinham visitas aleatórias. Ele, enfim, não vinha nunca. Começou a correr também à janela a qualquer som vindo da rua, um carro seria um táxi portando ele, um cão latiria para ele, o semáforo fechava-se para que ele atravessasse. Repentinamente a campainha chamou por uma última chance incapaz de ser Danilo, Joana, pelo olho mágico, viu sua mãe atrás da porta com aquela mesma cara de chumbada. Parecia-lhe que a mãe levava vários tiros cada vez que precisava dirigir-se a ela, ou que se injetava um vírus terrível às veias, contudo vinha-lhe, reclamando-a muito de sua conduta.

Joana ultimamente até achava que a mãe estava certa, as pessoas não poderiam, de fato, ir fazendo o que queriam sem se preocupar com ninguém.

Depois que a mãe explicou-lhe tudo sobre como deveria agir dali em diante, implacável como a filha, e fria, minuciosamente paciente, tirou da carteira um pouco de dinheiro "para ela se acertar e tomar um rumo melhor", uma economia para viajar à casa da irmã no final do ano da qual abdicara para "salvá-la". Então disse que não voltaria mais, e não gostaria que a telefonasse nem a procurasse em sua casa. Em menos de dez dias atingiria a maioridade, até o vencimento do contrato, o que levaria um ano, poderia passar o aluguel do apartamento em seu próprio nome ao invés do nome "do outro", com uma duração consciente da quantia teria tempo de arranjar um emprego qualquer, o tio concordou em manter-se como fiador daquela loucura, e 'menina que se mete com homem casado acaba sozinha mesmo'.

- Pensar nisso que você se tornou só me impede de ter tranquilidade para aproveitar cada coisa que planejo.

Fechou a porta e foi embora, deixando-a na mesa de mármore, os braços sobre a pedra gelada, um nó torcendo-lhe o peito e chocando-a contra o silêncio.

Poderia fazer um corte pequeno entre as pernas agora e pintar com a matéria de si as pálpebras com a cor do diabo. Quem tem medo de dizer? Dois pontos: DI-A-BO. Corria para si mesma. Morrer agora. Mãe, sou eu quem morre, era dever seu me fazer feliz nesse instante, pois parto precoce antecedendo a todos e este é meu último momento, então não me exija ser boa como nunca fui, ajeite-me em lençóis de imparcialidade e deixe-me ir em paz. Mas cubra-me antes que venha o frio, também, por favor... Pois é bem verdade que sempre quero teu colo nas piores horas...

Hostilmente, dominada por paixão intensa, espalhou-se novamente por um projeto insensato, e uma última vez quis forjar a voz de Danilo, agarrando-se à utopia de que o corpo dele pesava como um incêndio saboroso sobre ela:

“Sou louco agora. Louco e frutuosamente pecador. Meu pecado me faz transpirar meu sêmen e o que gozei - ENCANTO DELEITE ÊXTASE - pelos poros se cair na terra será regado por teu suor e nascerão flores lilases que não terão espinhos exigentes e não ferirão nossos corações de rouxinóis quando cantarmos.”

Anoitece novamente. O sono dela é azul porque é da cor da doçura que anseia doá-lo. Em meio à madrugada, seu pescoço humilde umedeceu-se de gotas alegres soltas, acordou delirante beijando os lábios de Edith Piaf, eis toda sua redenção por si mesma: criando caminhos solitários em sua força inexperiente; esteve pronta ao amor.

Canta o silêncio noturno e seu peito infla, emudece e morre: ancora-se. Vê a partida, o tão singelo não, sente a aspereza das mãos que vão embora, tão diferentes de como eram quando a receberam. Agora inúmeros cigarros queimam em sua alma, adoece, não de ausência, mas da falta de liberdade de poder esperá-lo. O amor repousa infinito e calmo em braços outros.

Amanheceu.

Decidiu que iria.

No fundo, bem no fundo, pensava que a mãe deveria abrigar um pouco de culpa também, pois não se gera um ser ao mundo à finalidade que ele siga em natureza morta preceitos invioláveis. Só que por tudo isso Joana pensava que também poderia ter sido melhor. É assim que não sente mais gosto na vida. As coisas não se unem, são incoerentes e descompassadas. Se atingisse certamente o orgulho da mãe que a criou sozinha, sem marido e sem poder contar com os avós da criança, seria completamente amargurada, nada do que a genitora lhe quer é capaz de adentrar sua alma. Como se involuntariamente tivesse vomitado cada prato de comida que a mãe lhe deu; nunca querendo ser ingrata. Sendo o que era, sem fingir para ninguém, foi ao que chegou: filha abortada depois de crescida.

'Aos dezessete anos ninguém deve mesmo enganar-se crendo ser possuidor dos oráculos vitais - pensou - mas embora impotente à sabedoria de tudo, parece-me que minha alma já nasceu com cem anos. Cem anos de puro e imenso cansaço. Tudo me pesa tanto em tão grande impiedade, sem o menor esforço para compreender meu mundo, e eu, embora visualize claramente as concepções de algumas pessoas - pois me segue uma constante aprendizagem sangrada mesmo quando somente por intuição -, não tenho o menor interesse em fazer parte desses outros mundos que não são o teu. Porque no teu, Danilo, sou eu, não outra qualquer que me indicaram a ser.

Por isso agora, agorinha mesmo, enquanto você dobra a esquina do seu local de trabalho, estou à sua espera na calçada, atenta e quente, para atirar contra você pelo menos dez vezes, porque se cheguei a mim mesma e não consigo recuar e agora não suporto mais a ausência de vida, a culpa é toda sua'.

Eis que o amor surge.

Ela quis repentinamente concluindo uma coisa inexplicável - porém facilmente reconhecida - sobre a vida, fazer algo de bom pela mãe e por si mesma. Sabia que já não havia tempo. O caminho que criou era somente seu, prisioneira de sua própria obra.

Sobre ela repousou um peso tão imenso quanto o de ir vivendo sob decisões alheias. Cansou-se muito, e como se fechasse e abrisse os olhos, simplesmente, trêmula, em sutil escuridão, sem nenhuma arma e nenhuma coragem, escondeu-se e não matou ninguém.