sábado, 15 de dezembro de 2012

A confissão do pecador no século XXI

Vendaval, vazio, turbulência. Mesmo unindo ponta a ponta cada uma das coisas existentes ou das coisas criadas e irrefletidas, o tudo jamais resultará naquele algo específico que tanto se sonha em silêncio. Cansa-se muito até que se perceba que ninguém jamais virá e nos salvará e um dos meios de não cravar na garganta a mágoa para que ela não exploda em meio aos outros é não implorar novamente que lhe prestem socorro. Todos os seres de que necessitamos, vindos do inalcansável... Sob matéria sonhosa, bêbada, pesada e triste. Há momentos em que você sente que é preciso morrer agora, sem esperar que nada mais aconteça, torcendo para que adivinhem em qual estado você estava e finalmente se consuma - mesmo que póstuma - a necessidade de compreensão. Morrer agora. É muito perigoso ir adiante e deste ponto não há mais como recuar. Sente-se: já é demais, não existe probabilidade de suportar, daqui ficaríamos estáticos enquanto a dor nos atravessaria fundo fundo fundo fundo em uma linha que não acaba nunca reta e cortante dentro do peito. Até esgotada a alma das dores, ainda existirão outras feridas à espreita, cortes que dilaceram e sugam a gente por inteiro, batendo à porta, sofreguidões famintas e corrosivas, pretejando tudo o que desenvolvemos dentro de nós. É a mesma dor que sente a mulher que nunca teve porque viver e agora vive para ter a certeza de que os filhos ficarão bem, mesmo ela mesma vendo-se pouco a pouco tornada em um zero à esquerda, vendendo o que sobrou das coisas que valem ninharias, a pulseira fina que a filha mais velha ganhou de batizado e o anel faltando uma pedra que ela mesma guardara desde jovem. Àquela dor de quem passa a esperar por um telefonema aos quinze anos e morre aos sessenta, flácido, amargo e inválido, ainda aguardando que tudo se reanime, que faça sair o espírito dessa condição de cego tateando imerso ao escuro, batendo com a ponta dos dedos dos pés em enormes pedras cortantes que se materializam traiçoeiras pelo caminho, a voz por trás do telefone que não toca nunca. Um cansaço mais denso do que a própria decomposição do corpo enterrado após o falecimento, é uma decomposição constante dentro da alma, como se o coração fosse uma úlcera e a alma inteira estivesse enfestada por lepra que a nenhum tempo descobriu-se a cura. É falta de unção, perda absoluta, são dois olhos secos querendo chorar dia após dia sem sequer saber como obter um impulso mínimo fragmentado que lhes dê esse resultado de desabafo. É não saber mais o que e nem como dizer diante de um encontro marcante, como se não houvesse mais sentido nem querer nesse tal dizer. É não ter mais porque pensar na roupa antes de se vestir ou não ajeitar os cabelos por querer ver-se de verdade, despreparado e sem beleza alguma, nem querer intensificar aquele algo tão secreto brotando e jorrando de si mesmo através de um perfume cuidadosamente espalhado pelo queixo e a parte de trás do pescoço, que deveriam ser beijados beijados beijados por imensas madrugadas inteiras, emanando suor e afago, é perder o sentido das pequenas coisas, desaprender a chegar aos prazeres minuciosos aos quais outrora sempre debruçara contemplativa dedicação. Não mais mar das palavras, colocá-las secas como folhas mortas, sem o antecessor fluido incessante que quanto mais se bebe mais se tem sede e prazer na sede de beber. Cair. Explosão. Já jogado ao chão, caindo de novo, de novo, de novo... Sangrando as inflamações da pele raspada no áspero solo do mundo sem ter qualquer reação, olhar vazio, mente em pausa, sabendo em alguma parte que é preciso ouvir qualquer som, raciocinar alguma palavra, ter nojo, ter dor, medo, êxtase de dar um passo que siga somente em frente. Nada disso vem, as coisas vão acontecendo e acontecendo. O crepúsculo é azul como o coração de uma árvore que aprisiona um espírito que geme e chora é azul. A noite é abafada, o corpo sua grossa e excessivamente, pedindo cigarros, cafeína, analgésicos, whisky; a garganta se encole e tem-se uma sensação estranha de que está fisgada, como se bebessemos cloro puro e outros desinfetantes ou produtos tóxicos; os calcanhares duas frutas podres comidas por vermes e dói muito ficar em pé, sustentando-nos sobre duas eternas inflamações agravadas.
Enquanto tudo isso se forma eu ainda espero uma mão invísivel tirar meus cabelos da testa e secar o suor em minha face abatida e enrugada. Pode vir de um pai, alguém por quem eu me apaixone, do Deus, de uma bruxa boa, de uma velha que conte histórias, de um jornaleiro, de uma enfermeira, da cozinheira de um restaurante, da garçonete de uma padaria, de qualquer um dos meus professores, de um escritor morto, de um travesti expulso de casa, de uma criança pobre que ainda não sabe que vai ser morta pela polícia em pleno dia em uma favela qualquer, das pessoas que magoei e que não me perdoaram, das pessoas que me magoaram e que me iludo ao fato de que já esqueci porque me vejo encurralado e sem ninguém, de um santo que abençoe um pão para que eu coma, de qualquer pessoa que me tire esse medo, esse medo extremo de dizer... De dizer o que me vem agora e é quase possível mastigar a frase dentro da boca. Alguém que recupere em mim a capacidade perdida de ter esperanças, ou que pelo menos me mostre por onde seguir para reencontrá-las, mas alguém que se faça entender porque eu já não tenho entendido quase nada. Estou completamente perdido e ainda vejo claramente tudo se movendo ao meu redor sem que me cause nenhum tipo de sensação. Então recupero a consciência e dentro de mim ouço um choro do qual preciso chorar, esse meu choro que exteriormente não acontece nunca.

domingo, 9 de setembro de 2012

O julgamento e o peso da legalidade de uma hipótese.

Eu preferia ter estudado e ido bem nas avaliações - provas de meu interesse, na visão dos professores -, garantindo meu crédito àqueles que têm a chave das portas certas para que eu possa seguir a trajetória que sempre sonhei. Sonhei ou aprendi a sonhar? Já não sei, sob esse mercado de capital, eu tão introspectivo, tão inquieto, tão necessariamente solitário e triste. Verdadeiramente me cansei. Com todo o meu phisy, ou o que quer que seja a composição da matéria profunda de nós mesmos. Passo meu tempo imaginando cenas absurdas, imaginando que sou um rei de qualquer coisa, que meu corpo não está mais entupido de maconha, que eu não preciso daquele tão singelo álcool para saber me colocar. Meu êxtase profundo de chegar um pouquinho perto de mim, e sentir bem apertado o coração sendo fisgado pelo anzol da vida comendo a vida. Agora querendo bater as cinzas dos cigarros que eu perdi a coragem de fumar. No começo desse ano, larguei minha matrícula em uma excelente faculdade porque preferi ficar com minha banda iniciante de rock, ou de rock iniciante. Foi exatamente o que fiz e queria ter feito, e gostaria de estar fazendo agora. Largar tudo, cair na estrada e entender meu caminho, na maior solidão. Minha banda era a coisa mais excitante que já me ocorrera. Eu queria comer a Cherie Currie. Queria beijar o olho cego do Bowie. Desisti de minha carreira acadêmica por uma única razão: desejo. Quis insuportavelmente sexo, violência e rebeldia. Contra tudo e contra o nada. Porque somos filhos sem pai. Porque sou parte de um grupo de veados apontados na rua. Sou amigo de putas apontadas na rua. Não temos a menor chance com essa sociedade, não há o que façamos para que isso mude. Sei que nesse mundo a vida que gostaria de levar seria bem diferente da que levo. Diferente, e impossível. Eu não tenho inteligência emocional para isso, perdoem-me. Agora que minha banda se afundou, que nada deu certo porque cada ordinário que eu tanto amei quis uma coisa diferente, estou em outra faculdade, em outro trabalho, seguindo o que é sensato. Estou completamente destruído, e, no entanto agora tenho onde me posicionar na sociedade e no mundo. Tenho prazeres mais puros, como conversas com pessoas de alma boa, em sorveterias e praças, sem drogas, sem riscos, sem a revolta burra da juventude. No entanto, essa paz não me alimenta tão bem. Talvez eu seja regido pelo inferno. Nem transar eu consigo porque aquele tempo inteiro de promiscuidade me traumatizou. Pode ser que por um milagre eu impressione o corpo docente através de minha ótica pessoal. A exatidão das ciências é o que nos faz sentir que fracassaremos. Quero humanidade, inconstância. Posso ser de fato um vagabundo como já ouvi, mesmo pagando minhas contas e garantindo o meu sustento antes mesmo de atingir a maioridade. Quero é ir para o rock, para os tablados encenar, contudo não vou, não quero mais, não posso. Nesse momento em que falo, sei plenamente que morri. Morri para mim mesmo, nunca mais quero saber de mim. Pego todo o meu pecado e vou ao encontro de uma porta, pronto a espancá-la até minhas mãos sangrarem, chorando, chorando muito, gritando, gago, sem espaço dentro de mim mesmo. Até que a porta não abra. Até que a porta não abra. Até que a porta não abra. Até que eu perceba que a culpa é minha e fracassei, e peça como quem pede uma esmola um pouco de amor para que isso me conforte. Em vista de não me atirar de um precipício, da altura de um enorme prédio, de não cortar os pulsos e ver o licor escarlate escorrer, de não criar meu romance de guerra, de não querer a forca, o gás do fogão, a carona até outro lugar onde eu possa me acabar aos poucos, o susto, o desespero, o abandono, a cara de insatisfeito, a sensação de incompetência, o imprudente direito de sonhar. Em tudo isso eu me descontrolei. Por isso terminei por procurar esse recanto, que vejo como uma quase clínica de alienação, que chamo de colocação no mundo e na vida, dentro de uma família - o que temos por aceitação. Toda vez que me reúno com meus amigos, àqueles que fariam algo pelo mundo assim como eu, os sensíveis, artistas, incansáveis, todos revelamos uma mesma intimidade ao outro: somos os natos perdedores desse planeta, somos estrangeiros na Terra, e o mundo nos rejeita como qualquer corpo repele um organismo estranho.