segunda-feira, 30 de agosto de 2010

O homem que não amava ninguém.

"Eu te dou pão e preferes ouro. Eu te dou ouro mas tua fome legítima é de pão".
(Clarice Lispector)


Hoje me torno andarilho de asfalto. Invadirei o solo proibido de um campo minado, semelhante àqueles que procuram um porão infecto a se sentarem nus, encurralados pelo excesso de presenças e de ratazanas e homens que assumem almas ratazanas.
Esses focos escuros de uma névoa - nova era literária - me consomem e faz em mim necessidade. Meu erro me persegue, me arranha, me põe fogo. Em meio às tantas tropas, centenas de policiais com as centenas de armas prontas a um novo golpe que mudaria o curso por todo o final. Eu cansado e estas sombras me mastigando a pele e roendo os ossos.
Repito: saboreie o ódio e aquela raiva tardia dos homens de quase uma idade inteira.

Uma massa se movimentara dentro de mim e reclama autonomia. Como alguém que sou, mas ainda não vindo à tona, desvendando meus segredos. Agora deslocado. E como me preenche saber estar deslocado... Procurando recanto, postura. Que a massa se acalme e haja sintonia entre o que era e o que é até virem novos segredos.

Sobre calçadas por onde me sentaria, encostado à árvore; a atmosfera encharcada de radiação. O derretimento meu e só. Eu comeria o interior dos companheiros de ossatura alterada pela vida de rua. Depositando a mão crua em um recipiente retangular, onde se refugia o alimento - o muito do pouco que resta, talvez uma sopa; algo como uma massa. Pois eu também tenho a fome. Aquela que não chamamos fome, mas sabemos o quanto é. Eu terei o recipiente, a massa; abrigando mãos sujas e doentes cuja água jamais lavaria, são mãos culpadas pela massa que o outro come. As mãos tristes levariam o alimento à boca de quem tem o próprio estômago desesperado. Eu não notaria os transeuntes. Eu teria um bloqueio. Em odor que funciona como grades, uma ingenuidade transformada em radar. Eu vagarei pelas calçadas de asilo implorando um prato de sopa fria em meio ao calor escaldante. Vestindo roupas mornas sempre sujas e as mesmas como pisar no solo proibido de um campo minado.

Ao recompor-me de um amor traído, pouco me renasci e vem-me outro, e corrói.
Deitado à cama. Cansado e violado. A transpiração me pesava contra os lençóis e me proibia de levantar-me. Pensava em tudo, todos. Eu seria o próximo amaldiçoado da arena, sentia que seria eu. Um vento fraco, que mais era um sussurro, me tocava no corpo. A sensação entorpecente de ser liberto do raciocínio, escapar dos turbilhões daquela cidade que o mundo concebera e era um projeto de mundo. O sussurro começava a me aquecer e meu rosto emanava o líquido que valeria como certeza, semblante mascarado de suor e saliva que escorre como lágrima e um pouco de sangue do nariz.

Quando uma superfície adesiva encontrou a minha. (...) Um tato neutro de temperatura.

Áspero que se derretia. Soube que seria eu, o visitado por um demônio; a vida me reservara esse acolhimento de lama. Era a mim um intenso desafio o de me mover, e paralisei. Nada. Por favor: nada. Meus olhos foram aprisionados pelo teto que não me permitiria oscilar, ver, seria a entrega total; a aceitação. Eu havia sido o escolhido, o que faria eu de mim: o então. Vinham-me vultos e risos e diversos cheiros de fêmea. O sangue de mãe que me lacrara e afastara-me do mundo, eu banhado em placenta oriunda de salvação garantida. Meu corpo formulava aos poucos um formigamento vagaroso das entranhas, algo que me vinha como um vômito de todos os gritos das almas aflitas. Tudo aquilo aquela mão fundida ao alto de minha cabeça circulava por meu corpo, era eu um feto mal gerado, interrompido e tóxico. O calor me subia do estômago e começava a queimar, estremecer a nostalgia do nojo desconhecido. Eu pertenceria àquela lava que me sufocava a garganta, e, como se uma rocha me esmagasse no estômago eu soltei um vômito de sangue carregado de partículas grossas como asas de insetos. Minha respiração passou a sacudir o corpo, o peito levava baques de si próprio e os soluços engasgavam aquele choro.
Eu queria grunhir e esfarelar todos os edifícios, ver a cidade inflamada pelo calor de meus poros, seria meu espetáculo de tristeza. Eu me entregava aquele sono profundo de loucura. Um transtorno seria mais pleno que as mentiras que eu vivi e fingi não ver e me encurralei.
Permaneci deitado. Algo incomodava dos pés à cabeça. Envolvia-me o arrepio breve e calado. Eu não poderia continuar ali. Aquela areia movediça invadira minha ótica e certamente me mataria. Algo passou a me polarizar, como um canto da mulher que atrai os homens ao corpo de mulher. Levantei-me. Nenhum som, espaço; eu cravado ao chão como estátua viva de fogo. O mais lento quanto pude, empenhando músculos de um corpo todo, a primeira perna se posiciona passo à frente, a segunda seguindo-a de inicio repetindo a lentidão e logo assumindo um desespero voraz e acordando duas pernas.
Quatro passos a mais à parede.
A atração me insistia, me fixei frente o portal de matéria feita. Casei palmas das mãos no concreto coberto de tinta branca, e ficamos nós, mudos.
Eu em sintonia com os enigmas de uma parede que me tornava de amante e degustava as núpcias. Atraíra-me até lá como aranha atrai a presa com frio ao cobertor quente da teia. Ela. Cansada e violada. A mulher que parira dezoito filhos, um seguindo o outro; os filhos que não teve. Eu seria um filho da parede, aquela escarrada e merecedora de noventa chibatadas. Eu me caberia nela em demônio. Por entre os dedos sentia o umedecer de uma parede que iria me comer. Uma amante. Aquele edifício me seria a natureza do solo natal e quente. Eu me decompor-iria, ainda sentia na boca o vômito, iria adentrar a parede de vomito que começava a nos unir, derretia-se e eu me derretia e assim seríamos.
Meu corpo pesava a ponto de inclinar-se, afundar meus braços na matéria de parede, e meu peito caiu do tronco em âncora.
Eu sentia a diferença de atmosfera. O escuro. O outro plano. Havia uma pequena família de vermes aguardando o meu restante de pés e pernas e todo o restante que se esquiva como eu, sempre. Decidi que era o momento de me levantar e saber. Quando ergui meu corpo eu pude ver uma mulher. Talvez o que me atraíra. Morta, sepultada. De essência vívida, ela era o meu espanto de mim mesmo. Um corpo em constante decomposição e frequentes feridas em lepra, olhos purulentos e unhas putrificadas, dentes que ameaçavam exibir-se, eu temia o grito daquela mulher, que me mataria de pavor, temia o quanto ela me olhava fixa nos olhos. Uma amaldiçoada, a feiticeira composta em solidão. Emanava um aroma atrativo de flores. Talvez flores noturnas. Mas, flores. Trajava uma túnica amarela e acinzentada que se dissolvia conforme dela cresciam larvas.
Meu corpo desejou mais volúpia caminhar até ela, descobrira a libido, iria nutrir-se dela. Iniciaria pelo pescoço de pele seca e sangue coagulado, mastigando pouco a pouco, em desespero desordenado, até alcançar as unhas purulentas onde nasceria o adubo e o petróleo. Queria devorar seu seio petrolífero de mulher e os dentes de ouro na geografia de boca. Eu iria explorá-la e violentá-la, queria comer daquele cadáver, lamber os cabelos longos e escurecidos pelo ninho contrário à vida.
Em suas entranhas ela ardia o ódio, assovio rouco e quente, assim como eu. A filha do rancor e das crianças violentadas, fruto desonesto a terrenos e celestes. Chamaríamos mulher da vida se o gemido do inferno nos fosse comum, era perfeita a desposar-me.

(...)
Esforcei-me e me movimentei contra o denso da lama da parede vômito, levantado o corpo. Eu havia alcançado meu limite. No abafado do quarto um assovio de retorno me locomovia até o espelho e nada notei além de cabelos carregados de suor, um olhar fundo de rosto cansado, meu retorno à esfera cansada. Ali a certeza do não acontecimento sem resquício de terra me caindo aos ombros, apenas manchas de sangue do vômito em minha roupa. Eu quis ver em mim mesmo o que ocorrera e me refletia e me era o que me é o mundo.

Eu mataria a verdade de mundo. E meu encanto que se fora... Se eu tivesse o novamente pediria socorro de juventude, mas o ser que busca o detalhe mítico dos guerreiros reconhece o instante de se desfazer de estar em cena. Éramos meu cavalo branco e eu até que a peste nos alcançara e me proibira a fábula. Algo se movimenta dentro de mim e reclama autonomia, como um grito rouco e entorpecido pela raiva de uma nação enganada. O Senhor pronto devorando a Ingenuidade que nada valia, destruindo-a, tomando-a seu local originário. Um bebia do outro e não mais havia segredos àquele Senhor que exigia, decompunha e me fazia em argila, assumia novas formas, eu nascia até que Criança e Velho se fundissem em um conjunto que se diria ser o 'homem' e vivessem em harmonia. Eu me seria e então os segredos inéditos de um após renovação.

Enquanto eu me sei eu passo a língua na ferida de lepra, bebo do espelho que me mostra minha covardia de homem. Um escravo de direita encurvado pelas décadas incontáveis da alma e as menos de duas do corpo - experiências tão pequenas e censuradas pela conveniência. Suje meu corpo, eu não cessaria. Eu seria o doente e pálido. Eu seria infeliz. Eu beberia o veneno e conheceria as substâncias e nada mais seria arsênico ou ópio ou gratidão e carência. Eu seria um desgraçado que vaga por suas verdades que sempre seriam as mentiras para o mundo. Eu não mais seria a verdade do mundo como um pedaço de pão que sangra pregado a uma cruz de madeira. Eu rasgaria a verdade que consolo e arderia em deslealdade. Eu seria o futuro fruto do proibido, mistério de procriação inválida, maldita. Eu me deitaria com Maria Madalena. Eu mataria. Eu pediria por vingança. Eu gritaria minha inveja àqueles que venceram. Eu seria mais um doente, o excomungado Lázaro que disse não ao chamado e não reviveu. O açoitado mal queimado em altar que enfeita praça. Ouviria os gritos da multidão que não cessa em me promover o destino que me engoliria em chamas e me traria o êxtase de ser sem retroceder. Aquele ser concreto e com sentimentos concretos. Eu gritaria como um espírito diabólico aprisionado ao tronco de uma árvore. Eu seria a compaixão. Eu seria o inferno e o inferno seria eu. Eu admitiria. Eu admitiria. Como o homem é homem e serve a mulher, como a mulher é mulher e pertence ao homem.

[...]
E engoliria uma força que liberta do emaranhado contrário à vida. A carcaça seria mais do que drogas de segunda mão, já passadas do ponto de temperatura ideal.
Eu conheceria um ritmo, eu seria um tiro, eu teria amantes, eu beijaria o suor dos corpos, eu seria dentro de mim um conflito irreal.
Houvera o ritual da carne conhecendo face ligeira, rosto que aponta o maior impotência de vida em mim. Eu quero comer um animal vivo e não o calado. Eu quero matar outros homens, eu não queria estar a me matar... Gemer o grito degradado àquele rosto, o mais que me alcance grunhir. Esse êxtase atingiria o todo inconveniente em mim.

Rebenta o momento denso e escuro do calar da noite em que o homem pensa em procurar todos aqueles que magoou. Abandonou. Traiu. Metralhou. Sabe o quanto seria ignorado, atingindo a plenitude dócil de uma solidão escondida, incessante. Que se olha e se reconhece – inválido emocional, analgésico: idiota.

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