quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Romeu e Virgínia Woolf.

- Esse, define todo um universo que é só meu e teu.
Ele retirou do bolso um papel um tanto amassado e deu à ela, pedindo que lesse, os dois iniciando assim o que haviam previamente preparado ao cabo das horas àquela noite.
- Já conhecia Saramago?
- É. Eu comentei algo com você sobre um livro que peguei na escola, lembra-se?
- É que sempre estamos lendo tanto a vida através de tantas coisas...
Ela sorriu como alguém que entende. E os corações, ali, entendiam.
Enquanto isso uma garota de cabelos modernos, à margem da mesa, olhava preocupada com aquela fumaça que a nicotina desenhava pela atmosfera que era apenas dos dois. Mas certamente a convidariam àquele mundo. Sim. Sempre estivera junto a eles.
Ao redor das latas longas e vazias iluminadas por uma única vela, de um alaranjado triunfal, situada ao centro da mesa, a política brasileira era discutida com o tom de insegurança própria a todas as gerações. Alguns entendendo e outros não querendo entender. Talvez ninguém entendesse. Na verdade, não era do que queriam falar.
Um garoto um pouco incomodado com o passado refletia sobre assuntos enterrados e incomodava às vezes. Mas ele era parte e contraste. Na mesa havia também uma criança, ciente de ser criança, sem álcool, sem nicotina, e ao mesmo tempo sem padrão e medo dos que ali estavam.
Uma das garotas da mesa resolveu levantar e se aproximar da piscina, junto àqueles que dançavam. O garoto que utilizava Saramago em sua carta a seguiu para conversar.
Antes disso, essa garota havia saído com outros pra comprar cigarros, e os jovens entrelaçados por Saramago ficaram a sós na mesa nova originária.
Depois da piscina, havia uma varanda de onde vinha a música. Eram tantos tão poucos que se completavam, um conjunto de magoados e felizes ao mesmo tempo. Pessoas que viam na relva uma perspectiva. Pessoas de humores traídos e amores limpos e pessoas de Saramago.
O garoto escritor tocava as mãos da garota que ele reencontrara e descobrira que também escrevia. Os dois haviam ficado tão diferentes e a conexão era mantida. Ela havia alisado os cabelos em um tom mais civilizado, que a trazia algo a mais de maturidade. Enquanto ele encurtara os seus em um ritual vaidoso de praticidade.
Quando a garota dos cigarros se levantou e seguiu para a trupe falante que dançava em torno da piscina, e o garoto da carta de Saramago a seguiu, seguiram-lhe também a garota de cabelo moderno e incomodada pela nicotina, ela precisava falar de um torpedo que um homem a mandara, e que esse homem, sim, era um homem.
A garota que recebera o papel amassado e com rasura, letras copiadas de um texto de Saramago também os seguiu. A garota dos cabelos modernos foi-se para a grama conversar com o garoto que entregou, bem de tardezinha - porque início de noite é durante a madrugada - o papel com o texto à garota pura com certo tom de maturidade. Lá os dois conversavam sobre peças de teatro e sobre os corações dos dois. Eram amigos de verdade. Às vezes aproximavam-se os outros, e o menino preocupado com o passado acabou ficando num canto conversando com a menina que ainda era uma criança, mas já compreendia, e ele falava e ela ouvia. A menina que recebeu a carta se pôs a recitar Caio Fernando Abreu com a garota dos cigarros, e o menino que levou a carta ficou abraçado à menina que temia a fumaça dos cigarros, aos poucos eles uniam-se em uma pequena roda. E ficavam em perfeita sintonia, sob a voz de duas garotas que já se faziam aos poucos mulheres.
Na varanda de onde vinha a música permanecia uma geração mais experiente, contudo, com a mesma fome juvenil dos garotos que faziam uma roda que não era bem de cantiga sobre a grama. Ao término do texto a roda se separava em novas duplas. O garoto da carta conversava com a garota dos cigarros que lhe contava um episódio sobre a noite anterior. Os dois passaram a se lembrar de como se conheceram e como a garota dos cigarros entrara na vida do garoto que escrevia cartas.
- Foi muito bom quando você veio. Como um astro, uma estrela-cadente que aparece repentina e trazendo luz e coisas boas.
- Você tem um coração enorme, disse ela, e disse a ele também que em cada ser humano existe todo um universo, e esse universo é sempre lindo.
Ao ouvir a citação que a garota dos cigarros fazia de si mesma, o restante se aproximou e todos ficavam emocionados. O garoto das cartas retirou um aparelho celular Z-3 bastante surrado do bolso e escreveu a duas pessoas que ele queria que estivessem ali, mas não estavam. Era um homem e uma mulher.
A garota que não gostava de cigarros e encantava homens por sua natureza final compartilhava com ele o desejo daqueles dois indivíduos ausentes que deveriam também estar lá. A mulher respondeu a mensagem, iniciando um diálogo coletivo através da tecnologia que só terminou com o término da noite.
Os jovens falavam também um pouco sobre família, sobre vida. Era uma noite com essência de origens.
Quando eles foram embora, o garoto das cartas sentia o prazer de ter amado a garota pra quem ele escreveu. As palavras não eram de Saramago. O autor fora à citação que iniciou a conversa e fez com que os dois se reconhecessem. "Você soube? Saramago faleceu...".
Enquanto isso ele já sentia a adrenalina de querer retirar o guardanapo do bolso e entregar a ela. Estava um pouco tímido pela simplicidade do papel e mais ainda pela simplicidade dos versos que poderiam ser fiéis. Ela, que era Aquariana, o respondeu que pessoas como Saramago estão sempre vivas e perguntou qual era o nome do rapaz de Escorpião.
Deitado em sua cama ele podia sentir o toque dos lábios dela com toda sua alma. Mas ela havia voltado pra cidade onde morava e os lábios nem mesmo haviam se tocado.
Naquela noite os beijos eram espirituais.

(Dedico à Renata Quintieri, por toda vida e inspiração que me transmite)

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